Protoplasma sem medo

Ao ser concebida, repousava em mim. Quieta, já muito viva, sem nenhuma forma, e sobretudo infinita. Só vibração, muita luz e muito som, sim, som. Só flúido fluindo, amoroso e atento. Conectada ao que me sustenta, sem questionar as suas leis imutáveis, segura e protegida portanto, e tão confiante. Receptiva ao que desse e viesse e pronta para tudo compartilhar, estender, criar, só potência ansiando por atualizar-se, comunicar derramando amor.

Protoplasma que eu era, e tendo recebido a ignição amorosa e criativa que me cabia pela minha própria escolha, prossegui nessa trajetória que agora se consumava, conforme os meus desígnios que se misturavam, ainda, com os do Criador. Entrei na vida, não sei em que exato momento, à medida que as células se multiplicavam com precisão geométrica divina, imprimindo no flúido inicial a lei do dharma. Mal sabia eu que havia feito votos de a ela me conformar.

No útero, talvez, aquecida e nutrida, ainda sem necessidades, aquele imenso esquecimento. Onde foi mesmo que esquecemos? Em que exato momento sobreveio a passagem, aquela grande distração e com ela o afastamento da generosa lei que nos protege e sobretudo alegra por nos unir? Por que não falamos dessa passagem, que sinaliza o aparentemente auspicioso ingresso naquilo que chamamos de matéria ou prakrti

Capturados por vezes inospitamente num corpo com o qual será preciso aprender a lidar, buscamos reorientar-nos e, comandados pelas necessidades dessa matéria que nos envolve, surge o primeiro sofrimento, manifestado na busca constante pelo conforto do seio materno que parece tudo prover. E por um curto período podemos retornar à bolha, quieta, viva, infinita e sem forma. Por quanto tempo ainda?

Sofrimento não se apresenta como tal, sofrimento não aparenta ser sofrido, é esperto, recorre a muitos expedientes para que possa permanecer no escuro da sombra, oculto de nós mesmos, e assim corremos o tempo todo à busca do conforto da aparentemente segura conexão com o ambiente que nos cerca. Numa hipótese feliz, ao seio materno vem somar-se as figuras que compõem esse ambiente a ser criado, configurando a paisagem dentro da qual cresceremos, mais, ou às vezes menos, protegidos. Ali, o retorno, aí, cada vez menos frequente, à memória das sensações da bolha original que nunca se separou do Todo da consciência primordial inteligente que nos quer criadores.

Criar é estender amorosamente, e é esse o aprendizado a fazer. A compreensão desse tripé criaçãoextensãoamor demanda vidas e mais vidas de experiências, durante as quais não criamos e sim projetamos. Projetamos o projeto que permitimos ser construído na pequena mente, com a qual nos identificamos ora alegre e prontamente, ora mergulhados em ansiedade e desespero. Ora no hábito do apego, ora na rejeição repetidamente ensaiada. Por vezes ainda, no repouso de momentos de paz e serenidade, quando tudo vale a pena.

Uma só dessas vidas, a aparentemente atual, é o que somos precariamente capazes de administrar, porque misericordiosamente a lei cósmica, por ora, nos faz esquecer as outras. Se é agora que um alvorecer de consciência nos chama, pelas miríades de eventos com que somos defrontados, paramos de perder tempo e, titubeantes ainda, colocamo-nos em marcha para encurtar o roteiro. “Bata à porta, e ela se abrirá, peça e lhe será dado, busque e achará.” Foi Jesus homem anjo que assim sugeriu.

O que é esse desejo que nos impulsiona, senão a vontade irreprimível de retornar à bolha de conforto de paz indizível da qual fomos, sempre aparentemente, expulsos. A esse aparente desterro, engano monumental que nos enche de culpa inconsciente pelo resto das existências, Patanjali chama de avidya. É um estado que perdura através das inúmeras encarnações durante as quais sonhamos estar separados do Criador, sofrendo assim a perda da reta percepção. Utilizamos equivocadamente o poder de criação que a Fonte nos conferiu, para nos deixar conduzir pelo que ditam os sentidos. Assim, perdemo-nos na ilusão de que não seríamos seres totalmente preenchidos e completos. O sonho se transforma em pesadelo, que Patanjali caracteriza nos primeiros sutras: distorção distraída que nos afasta da essência original, o purusha imutável, o Self verdadeiro que conhece a realidade do protoplasma sem medo.

É o desejo, oculto sob inúmeros disfarces, que provê a guiança necessária ao retorno.

2 respostas para “Protoplasma sem medo”

  1. Oi Lúcia,

    Texto profundo. Me emocionou bastante. 🙏🏻🙌🏻✨ Muito Obrigada 🙏🏻💖

    Grande beijo
    Simone Arantes

  2. Obrigada, Simone! Vindo de vc fico especialmente feliz pela vibração alinhada !