Desapego e Deslumbramento

Explorar o desapego é compreender o perdão.

Desapego de mim, daquele banco de dados instalado na minha mente por inúmeras entidades, nem sempre, ou quase nunca, com a minha permissão. Que permissão é essa? Não sei dela, por muito tempo. Dizem-me que como ser humano possuo o livre-arbítrio, conceito quase que santificado para separar cada um de nós do resto da Criação.

Separação que ameaça dar cabo da Criação.

Eu, aqui. O resto lá. A distância possível, por favor. A proximidade parece ameaçadora, imprevisível, indefinível, melhor não arriscar. Instala-se o estado de sítio, e não é preciso muito esforço para que o fosso tome as proporções desejadas pela entidade incógnita que conduz o rebanho, seguindo a velha lei do dividir para controlar. Divisão, separação, competição firmaram-se no banco de dados largamente aceito, por oferecer respostas fáceis, convenientes e cômodas.

Mas o coração desconfia.

A separação manifesta-se nessa quantidade espantosa de opiniões erráticas, ora celebradas como convergentes, ora demonizadas como divergentes. Afinal, o sistema pacientemente nos ensinou, por muito tempo e com a frequência e a consistência necessárias para estabelecer a boa prática, a analisar, separar (de novo!), usar a razão, a lógica e o debate para chegar à conclusão, à definição e ao julgamento, final, definitivo, certeiro, indubitável. Solução para todos os problemas. A boa prática do consenso que se acredita arauto da verdade absoluta, porque precisamos tanto de certezas!

Como se fosse possível debater a percepção de cada um.

Eis que o Universo e a Criação não param no tempo tal como pede a opinião que julga e finaliza, cristaliza e acredita resolver para alívio geral. O Universo e a Criação dançam a sua dança, e ela é sim, cósmica, no campo vazio, dizem, das infinitas possibilidades. Tem para todos! Entrelaçamentos inimagináveis, ora caminhando juntos, ora fingindo separar-se, pela mera beleza da coreografia espetacular. Ora clareza que faz sentido e carrega beleza por frações de segundo, ora caos inexplicável e assustador mostrando a feiura que pede coragem para ser encarada.

Eis que, a boa prática pede o desapego.

A boa prática só conduz até a próxima esquina, logo ali, a dez segundos elevados à potência menos dezessete do ponto de partida. Ao dobrá-la, o panorama já é outro, e pede outro tipo de boa prática. Não me dou conta e também não dou conta. Difícil e sofrido, desapegar do que, conquistado com tanto esforço, aparentemente funcionava tão bem. A vida caminha desse jeito mesmo. É no desapego que ela revela toda a sua magnificente diversidade e ao mesmo tempo o glorioso tecido conectivo que sustenta a mim, a você, àquele ali. Não há como separar, senão por um breve período de tempo, para fincar o pé, reorientar-se nessa existência fugidia e volátil, desapegar, perdoar a si mesmo e seguir em frente. Esse é o livre-arbítrio que une, e nisso, descortina-se o deslumbramento. 

Deslumbramento, o thaumatzein que fazia os velhos pré-socráticos admirar o firmamento e aprender a filosofar na busca de si mesmos, nova guinada evolutiva que nos é permitido repetir ad infinitum através das linhas de tempo que se entrelaçam.